Por Clarissa Zuza (estudante de Jornalismo da FAPSP)
Em outubro de 1992, às vésperas das eleições municipais, a Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru, foi palco do massacre que deixou mais de uma centena de presos mortos, após invasão policial tentar reprimir uma rebelião dentro do Pavilhão Nove do presídio localizado na Zona Norte de São Paulo. Várias obras – literárias, cinematográficas e musicais – mantêm viva a história de horror ocorrida 23 anos atrás. O prédio foi implodido em 2002, e hoje a área abriga o Parque da Juventude. O massacre é apontado como um dos principais motivos da criação da facção Primeiro Comando da Capital (PCC), fundada no ano seguinte ao massacre, que em seu estatuto, lembra das mortes.
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Corpos são colocados nos corredores do IML por falta de espaço nas salas (Foto: Epitáfio Pessoa 04.10.1992) |
MASSACRE
Na tarde do dia 02 de
outubro de 1992, na tentativa de conter uma rebelião iniciada no Pavilhão Nove
do Carandiru, uma operação de três conhecidos batalhões de elite da Polícia
Militar de São Paulo (PMSP) que durou cerca de 20 minutos, matou 111
presidiários. 102 foram baleados, em sua maioria na cabeça, e outros nove
morreram por ataques de armas brancas, 89 ainda aguardavam julgamento. Segundo
relatório da PM, 22 policiais ficaram feridos, nenhum à bala.
Ainda segundo o
Especial, os presos foram obrigados a carregar os corpos para as galerias do
pavilhão. Segundo David, a noite que seguiu foi de camburões da PM levando os
corpos para o Instituto Médico Legal (IML), “isso foi até de madrugada”
completa.
Foram 93 mortos divididos
entre o primeiro e o segundo andar do pavilhão, onde atuou a tropa de elite da
PMSP, a Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar). Oito mortos no terceiro
andar, onde atuou o COE (Comando de Operações Especiais), e dez mortos no
quarto andar, onde atuou o Gate (Grupo de Ações Táticas Especiais).
Às 20h do dia 02 de
outubro, o Governo do Estado divulgou que oito pessoas foram mortas na
rebelião. No dia seguinte, meia hora antes do encerramento das votações do 1º
turno das eleições municipais, o governo corrigiu o número para 111. O PMDB (Partido
do Movimento Democrático Brasileiro), partido do então governador Fleury Filho,
tinha um candidato a prefeito na cidade de São Paulo.
GOVERNADOR
Luiz Antônio Fleury
Filho era o então governador de São Paulo pelo PMDB, Fleury governou o Estado de
1991 a 1995. Nunca foi processado criminalmente pelo ocorrido, e em entrevista
ao Terra, 20 anos depois, defendeu sua política de Segurança Pública.
Na entrevista, o
ex-governador, deixa claro que não se arrepende de nada naquele dia, mas que
seria muito melhor que não tivesse acontecido, “talvez eu fosse presidente da
República”. Fleury tinha a intenção de se lançar candidato à presidência em 1994,
e durante a entrevista disse várias vezes que o massacre atrapalhou seus
planos, mas em momento algum lamenta as mortes.
Apesar de dizer que a
autorização da invasão da PM não partiu dele, e sim de seu secretário, o
ex-governador declara que faria o mesmo: “Se eu estivesse no meu gabinete [Fleury
estava na cidade de Sorocaba no momento do massacre], eu teria dado a ordem.
Mesmo hoje, sabendo de todas as consequências, eu daria ordem para entrar”.
Fleury diz que “quem
autorizou foi o secretário de segurança, e autorizou bem. E quanto a isso, a
ordem foi absolutamente legitima. Tinha que entrar mesmo. Porque a minha
polícia não se omite”. Ele ainda declara que considera a expressão “massacre”,
uma expressão preconceituosa, e diz não aceitá-la. O ex-governador nega ter omitido
da imprensa o verdadeiro o número de mortes, e diz que apenas queria comunicar
a população um número correto de mortos.
Ele chegou a afirmar
que segundo pesquisa feita na época, metade da população foi a favor da ação da
polícia. Para David Oreste, sobrevivente do massacre, o apoio de parte da
população à ação se deu por desconhecimento: “a sociedade imagina que ali eram
pessoas irrecuperáveis. Eram todos primários, sumariando, pena vencida,
progressão de regime e molecada”.
JULGAMENTO
Em abril do ano
passado, após 12 meses de julgamento, 73 policiais foram condenados pela morte
de 77 presos no massacre, nove mortes foram provocadas por armas brancas, e o
Ministério Público pediu que elas fossem retiradas da acusação por não ter como
determinar se o ataque partiu de outro preso ou da polícia, alguns policiais
escaparam do julgamento, pelo crime de lesão corporal ter prescrevido. Todos
declararam que agiram em legítima defesa, e recorreram da decisão em liberdade.
“Eu entrei na casa de detenção e não neguei. Os meus homens entraram e não
negaram [...] eu sei que nós não matamos aqueles 73 homens”, afirmou o ex-comandante
da Rota, tenente-coronel Salvador Modesto Madia em depoimento.
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Carros e Policiais da ROTA em frente à casa de detenção no dia do massacre (Foto: Monica Zurattini 02.10.1992) |
Na ocasião, a Anistia
Internacional considerou positiva a condenação dos réus no Carandiru, mas condenou
o fato dos 73 policiais recorrerem em liberdade, mais de 20 anos depois. Já a
Presidente Dilma Rousseff considerou o fim do julgamento uma vitória contra a
impunidade, ignorando o fato dos policiais poderem recorrer em liberdade: “O
julgamento do Carandiru, com amplo direito de defesa e dentro das regras do
Estado de Direito, representa uma vitória contra a impunidade”, postou em seu
twitter.
Em 2001, o coronel
Ubiratan Guimarães, que comandou a operação, foi condenado a mais de 630 anos
de prisão, pela morte dos 102 presos que foram mortos em decorrência de armas
de fogo no massacre, mas não passou nem um dia preso. Cinco anos depois a
sentença foi anulada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Alguns meses
depois, ele foi assassinado dentro do seu apartamento, com um tiro na barriga.
PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL
Segundo especialistas,
o massacre do Carandiru foi o principal responsável pela criação da facção
Primeiro Comando da Capital que foi criado um ano após os 111 mortos no
Pavilhão Nove. O PCC nasceu por um grupo de presos em 31 de agosto de 1993, na
Casa de Custódia de Taubaté, tendo como principais objetivos combater os maus
tratos no sistema prisional e evitar novos massacres como o do Pavilhão Nove.
“O massacre do
Carandiru foi a gota d’água pra criação do PCC. O episódio está registrado até
no estatuto de fundação da facção”, declara o jornalista Josmar Jozino, autor
de três livros sobre o PCC, em entrevista à BBC em 2012. No “Estatuto do PCC”
divulgado pela Folha de São Paulo em 2001, a passagem está no item 13 “Temos
que permanecer unidos e organizados para evitarmos que ocorra novamente um
massacre semelhante ou pior ao ocorrido na Casa de Detenção em 02 de outubro de
1992, onde 111 presos foram covardemente assassinados, massacre este que jamais
será esquecido na consciência da sociedade brasileira. Porque nós do Comando
vamos mudar a prática carcerária, desumana, cheia de injustiças, opressão,
torturas, massacres nas prisões.”.
Em entrevista ao Portal
Terra, em 2012, Camila Dias, professora da Universidade Federal do ABC e
pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São
Paulo (USP), declarou que “O PCC é, sem dúvida, o principal efeito do massacre.
Não apenas deste evento isolado, mas da política de segurança daquela época,
marcada pela violência institucional, pelo desrespeito aos direitos e pela
arbitrariedade do Estado“.
No entanto o
ex-governador de São Paulo, Fleury, disse também em entrevista ao Terra que o
massacre ter motivado a criação da facção “é lenda”. “Sabe o que era o PCC em
1993? Era o time de futebol para disputar o torneio interno das cadeias de São
Paulo. Em 1993 e 1994, ele só era isso. Ele se organizou a partir de 1995 com
essas 63 rebeliões que aconteceram. E não foi uma reação. Aí é uma
glamourização do PCC. Eles se aproveitaram da fraqueza do governo de Mário Covas
[Governador de São Paulo de 1995 a 2001]”, declarou na época.
Segundo Investigações
do Ministério Público, membros do PCC teriam assassinado em 2005, a tiros Joel
Ismael Pedrosa, que dirigia o presídio na época do massacre, e também
administrou a Casa de Custódia de Taubaté.
SÃO PAULO, O MASSACRE DIÁRIO
Em 1993, o presídio que
tinha capacidade para 3.300 detentos, abrigava somente no Pavilhão Nove mais de
2.000 homens, eram no total mais de 7.000 presidiários. O presídio que foi o
maior da América Latina por 46 anos, chegou a alojar mais de 8.000 presos.
Na época o massacre foi
visto como um reflexo da política de repressão do Estado, como estratégia para
combater o crime, em que muitas vezes a morte era considerada como melhor
maneira de repressão. Após a tragédia, com a revolta da população, houve a
tentativa da humanização da polícia, mas não durou muito.
Para a pesquisadora Alessandra
Teixeira, do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) a Segurança
Pública em São Paulo, é marcada por uma história de “avanços e retrocessos”,
declarou ao R7, em entrevista, em 2012.
Segundo ela, em 1987 Orestes
Quércia [governador de São Paulo de 1987 à 1991], foi eleito
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PM em frente à casa de detenção dois dias após o massacre (Foto: Itamar Miranda 4/10/92) |
com a bandeira da
repressão, e com o seu “Pacote de Segurança”, ele retoma truculência da polícia,
o que foi intensificado, no governo de Fleury, culminando no massacre. Já no
primeiro mandato de Mario Covas [1995-1998], ela identifica a tentativa de se
tentar um plano mais baseado na racionalidade, e menos na pura truculência.
Porém com a chegada de Geraldo Alckmin [atual governador de São Paulo] ao
governo em 2001, já no segundo mandato de Covas, quando ele fica doente, ela
declara que “pós Covas, o que se viu foi um retrocesso total. Os dados dizem
isso. No segundo mandato, ele fica doente e quem assume é o Alckmin. A partir
daí, as estatísticas de letalidade policial começam a subir”.
Em 2002, após 20 anos
do massacre, o presídio foi implodido, e hoje a área abriga o tranquilo Parque
da Juventude, ao lado do metrô Carandiru, que transformou em escolas técnicas
os pavilhões quatro e sete do presídio, além de transformar em ginásio a
oficina de trabalhos manuais, e contar com ampla área verde, e áreas de esporte
e lazer.
Mas infelizmente, da
mesma tranquilidade não gozam os presídios e as periferias paulistanas, que
continuam a sofrer com o genocídio diário, comandado pelo Governo do Estado de
São Paulo e operado pelo seu braço armado. A política de repressão e extermínio
nunca acabou.
O Estado de São Paulo,
em 2014, possuía a maior população carcerária do País, com mais de 200 mil presos.
E o Brasil foi apontado como quarto colocado no ranking mundial, com mais de
600 mil presos. Um terço dos presos do país está em São Paulo, segundo dados
divulgados pelo Ministério da Justiça.
Em 2011, o tenente coronel
Salvador Modesto Madia, que ainda era réu no processo do Carandiru, assumiu o
comando da Rota, indicado pelo então secretário de Segurança Pública do Estado
de São Paulo, Antônio Ferreira Pinto. 23 anos após o massacre, a tropa de elite
da PMSP segue se envolvendo em flagrantes forjados, violações de direitos,
violência, e execuções mascaradas de “autos de resistência”. Em setembro deste
ano o comandante da Rota, o tenente coronel Alexander Gaspar Gasparian foi
substituído, após menos de sete meses de assumir o cargo, na sua gestão a tropa
teve pelo menos três fortes desvios de condutas comprovados, entre eles, a
prisão de um pelotão inteiro, formado por 14 homens, por forjar um tiroteio
para justificar a morte de dois homens, além da prisão de um soldado do
batalhão, em setembro, após ter sido identificado por um sobrevivente da maior
chacina do ano ocorrida no Estado, nas cidades de Osasco e Barueri, em agosto
que deixou 19 mortos, e ainda não foi solucionada.
Além da superlotação
carcerária, São Paulo, tem uma política institucionalizada de repressão
policial, após 21 anos de Governo do PSDB. Somente neste ano foram 76 mortos em
chacinas nas cidades da Grande São Paulo, todas em bairros periféricos, todas
as vítimas eram moradoras dos bairros ou arredores, na maioria delas, as
suspeitas estão baseadas em ataques policiais. Segundo dados da ouvidoria da
Polícia, a tropa de elite da PMSP foi o batalhão que mais matou suspeitos este
ano no Estado. No total foram 118 mortes em ações das policias militar e civil
em 27 cidades, sendo 13 mortes de responsabilidade da Rota.
Em setembro deste ano,
a Secretaria de Segurança Pública (SSP), divulgou que houve aumento no número
de homicídios dolosos no Estado. No mês de agosto em relação ao ano passado,
foram 106 vítimas, para 88 no mesmo período em 2014, a alta aconteceu
principalmente pela chacina de Osasco e Barueri. "A polícia está de
parabéns porque está trabalhando, e todos os índices estão em queda. Nós éramos
o 25º Estado brasileiro em criminalidade, com os piores índices. Hoje, somos o
primeiro do Brasil. Temos o menor índice de homicídios do país", elogiou o
governador Geraldo Alckmin, em uma visita a São José do Rio Preto (SP). Ele
ainda declarou que os resultados são positivos porque mostram queda na
criminalidade do estado.
MASSACRE SERÁ LEMBRADO
Nessas mais de duas
décadas, várias obras literárias, cinematográficas, musicais e até mesmo uma
entrevista com a dançarina e cantora Rita Cadillac, conhecida como “madrinha”
dos detentos, e que fez shows periódicos no presídio, mantém viva a história de
horror vivida no Pavilhão Nove. Entre as obras estão cerca de sete livros,
cinco músicas, um filme e uma série. Entre as mais famosas estão as músicas
“diário de um detento” do grupo de rap Racionais MC’s, e “roleta macabra” do
também grupo de rap Facção Central, que em trechos fazem referência ao
massacre: “Dois ladrões considerados passaram a discutir. Mas não imaginavam o
que estaria por vir. Traficantes, homicidas, estelionatários. Uma maioria de
moleque primário. Era a brecha que o sistema queria. Avise o IML, chegou o
grande dia”, dos Racionais e “O covarde que fuzila 111 no Carandiru, à paisana
anda com a funcional no cu”, do Facção Central. Outras obras famosas são o
livro “Estação Carandiru”, escrito pelo médico Drauzzio Varella, e o filme
“Carandiru” de Hector Babenco. A tragédia também ganhou uma plataforma online,
com noticias, artigos, fotos, documentos, e todo tipo de arquivo relacionado ao
massacre, chamada “Memória Massacre Carandiru”.
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Capa do livro "Carandiru", de Drauzio Varella |
ATO NO CENTRO
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Manifestação em memória ao Massacre (Foto: Facebook/página do evento) |
Na última sexta-feira,
dia em que se completou os 23 anos do massacre do Carandiru, uma manifestação
auto intitulada “Ato em memória aos 23 anos do Massacre do Carandiru - nem
redução, nem Fundação: por uma vida sem grades!”, aconteceu no centro da cidade
de São Paulo, segundo o site EBC, o protesto reuniu parentes de vítimas da
violência do Estado, movimentos sociais como o Movimento Passe Livre (MPL), e
coletivos autônomos, para lembrar a barbárie ocorrida, no Complexo do
Carandiru, mais de duas décadas atrás. O protesto foi da Faculdade de Direito
da Universidade São Paulo (USP), passando pelo prédio da SSP e pela praça da
Sé, parando no prédio do Tribunal de Justiça, onde os nomes dos 111 presos
assassinados foram lidos. A caminhada foi encerrada em frente ao Quartel do
Comando Geral da Polícia Militar com mais um ato, os manifestantes carregavam
velas acesas.
Policial bom é policial morto.Sempre bom relembrar esse tipo de violência, esses lixos tem que ser cada vez mais reprimidos para uma sociedade justas sem bandidos fardados. Parabéns pela postagem, continue assim!!! Viva o PCC!!!
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