7 de outubro de 2015

MASSACRE DO CARANDIRU COMPLETA 23 ANOS, E NADA MUDOU

Por Clarissa Zuza (estudante de Jornalismo da FAPSP)

Em outubro de 1992, às vésperas das eleições municipais, a Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru, foi palco do massacre que deixou mais de uma centena de presos mortos, após invasão policial tentar reprimir uma rebelião dentro do Pavilhão Nove do presídio localizado na Zona Norte de São Paulo. Várias obras – literárias, cinematográficas e musicais – mantêm viva a história de horror ocorrida 23 anos atrás. O prédio foi implodido em 2002, e hoje a área abriga o Parque da Juventude. O massacre é apontado como um dos principais motivos da criação da facção Primeiro Comando da Capital (PCC), fundada no ano seguinte ao massacre, que em seu estatuto, lembra das mortes.

Corpos são colocados nos corredores do IML por falta de espaço nas salas
(Foto: Epitáfio Pessoa 04.10.1992)
MASSACRE
Na tarde do dia 02 de outubro de 1992, na tentativa de conter uma rebelião iniciada no Pavilhão Nove do Carandiru, uma operação de três conhecidos batalhões de elite da Polícia Militar de São Paulo (PMSP) que durou cerca de 20 minutos, matou 111 presidiários. 102 foram baleados, em sua maioria na cabeça, e outros nove morreram por ataques de armas brancas, 89 ainda aguardavam julgamento. Segundo relatório da PM, 22 policiais ficaram feridos, nenhum à bala.


Naquela tarde, 321 policiais militares tiveram autorização do então Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Pedro Franco de Campos para invadir o Pavilhão Nove do Carandiru. Entraram com 362 armas, desde pistolas a fuzis e metralhadoras. “Eu me lembro que eles vinham gritando: ‘o Choque chegou, vocês pediram, o Fleury mandou’ e davam rajadas de metralhadoras. Você ouvia gritos horríveis e a galeria cheia de presos mortos”, relembra o sobrevivente Francys Lins, em entrevista concedida ao portal Terra, em 2012 para o especial de 20 anos do massacre. Também entrevistado pelo Terra, outro sobrevivente, David Oreste, diz que os policiais “agiram como predadores vorazes, para eliminar mesmo”, e lembra que foram obrigados a ficar nus assim que a tropa de choque invadiu o Pavilhão, e a se dirigir ao pátio, onde sentados com as mãos na cabeça, os policiais perguntavam quem estava cansado, quem deu resposta afirmativa, foi assassinado, “só escutava os tiros e o tombo do corpo caindo”, declara.

Ainda segundo o Especial, os presos foram obrigados a carregar os corpos para as galerias do pavilhão. Segundo David, a noite que seguiu foi de camburões da PM levando os corpos para o Instituto Médico Legal (IML), “isso foi até de madrugada” completa.

Foram 93 mortos divididos entre o primeiro e o segundo andar do pavilhão, onde atuou a tropa de elite da PMSP, a Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar). Oito mortos no terceiro andar, onde atuou o COE (Comando de Operações Especiais), e dez mortos no quarto andar, onde atuou o Gate (Grupo de Ações Táticas Especiais).

Às 20h do dia 02 de outubro, o Governo do Estado divulgou que oito pessoas foram mortas na rebelião. No dia seguinte, meia hora antes do encerramento das votações do 1º turno das eleições municipais, o governo corrigiu o número para 111. O PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), partido do então governador Fleury Filho, tinha um candidato a prefeito na cidade de São Paulo.

GOVERNADOR
Luiz Antônio Fleury Filho era o então governador de São Paulo pelo PMDB, Fleury governou o Estado de 1991 a 1995. Nunca foi processado criminalmente pelo ocorrido, e em entrevista ao Terra, 20 anos depois, defendeu sua política de Segurança Pública.

Ex-governador de São Paulo, Fleury, em entrevista ao Portal Terra
(Foto: Reprodução/YouTube)
Na entrevista, o ex-governador, deixa claro que não se arrepende de nada naquele dia, mas que seria muito melhor que não tivesse acontecido, “talvez eu fosse presidente da República”. Fleury tinha a intenção de se lançar candidato à presidência em 1994, e durante a entrevista disse várias vezes que o massacre atrapalhou seus planos, mas em momento algum lamenta as mortes.

Apesar de dizer que a autorização da invasão da PM não partiu dele, e sim de seu secretário, o ex-governador declara que faria o mesmo: “Se eu estivesse no meu gabinete [Fleury estava na cidade de Sorocaba no momento do massacre], eu teria dado a ordem. Mesmo hoje, sabendo de todas as consequências, eu daria ordem para entrar”.



Fleury diz que “quem autorizou foi o secretário de segurança, e autorizou bem. E quanto a isso, a ordem foi absolutamente legitima. Tinha que entrar mesmo. Porque a minha polícia não se omite”. Ele ainda declara que considera a expressão “massacre”, uma expressão preconceituosa, e diz não aceitá-la. O ex-governador nega ter omitido da imprensa o verdadeiro o número de mortes, e diz que apenas queria comunicar a população um número correto de mortos.

Ele chegou a afirmar que segundo pesquisa feita na época, metade da população foi a favor da ação da polícia. Para David Oreste, sobrevivente do massacre, o apoio de parte da população à ação se deu por desconhecimento: “a sociedade imagina que ali eram pessoas irrecuperáveis. Eram todos primários, sumariando, pena vencida, progressão de regime e molecada”.

Fleury era parente do famoso Sérgio Fleury, que atuou como delegado do Dops (Departamento de Ordem e Política Social), durante a ditadura militar. Também denunciado pelo Ministério Público de ser o principal líder do Esquadrão da Morte, na época.

JULGAMENTO
Em abril do ano passado, após 12 meses de julgamento, 73 policiais foram condenados pela morte de 77 presos no massacre, nove mortes foram provocadas por armas brancas, e o Ministério Público pediu que elas fossem retiradas da acusação por não ter como determinar se o ataque partiu de outro preso ou da polícia, alguns policiais escaparam do julgamento, pelo crime de lesão corporal ter prescrevido. Todos declararam que agiram em legítima defesa, e recorreram da decisão em liberdade. “Eu entrei na casa de detenção e não neguei. Os meus homens entraram e não negaram [...] eu sei que nós não matamos aqueles 73 homens”, afirmou o ex-comandante da Rota, tenente-coronel Salvador Modesto Madia em depoimento.
Carros e Policiais da ROTA em frente à casa de detenção 
no dia do massacre (Foto: Monica Zurattini 02.10.1992)

Na ocasião, a Anistia Internacional considerou positiva a condenação dos réus no Carandiru, mas condenou o fato dos 73 policiais recorrerem em liberdade, mais de 20 anos depois. Já a Presidente Dilma Rousseff considerou o fim do julgamento uma vitória contra a impunidade, ignorando o fato dos policiais poderem recorrer em liberdade: “O julgamento do Carandiru, com amplo direito de defesa e dentro das regras do Estado de Direito, representa uma vitória contra a impunidade”, postou em seu twitter.

Em 2001, o coronel Ubiratan Guimarães, que comandou a operação, foi condenado a mais de 630 anos de prisão, pela morte dos 102 presos que foram mortos em decorrência de armas de fogo no massacre, mas não passou nem um dia preso. Cinco anos depois a sentença foi anulada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Alguns meses depois, ele foi assassinado dentro do seu apartamento, com um tiro na barriga.

PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL
Segundo especialistas, o massacre do Carandiru foi o principal responsável pela criação da facção Primeiro Comando da Capital que foi criado um ano após os 111 mortos no Pavilhão Nove. O PCC nasceu por um grupo de presos em 31 de agosto de 1993, na Casa de Custódia de Taubaté, tendo como principais objetivos combater os maus tratos no sistema prisional e evitar novos massacres como o do Pavilhão Nove.



“O massacre do Carandiru foi a gota d’água pra criação do PCC. O episódio está registrado até no estatuto de fundação da facção”, declara o jornalista Josmar Jozino, autor de três livros sobre o PCC, em entrevista à BBC em 2012. No “Estatuto do PCC” divulgado pela Folha de São Paulo em 2001, a passagem está no item 13 “Temos que permanecer unidos e organizados para evitarmos que ocorra novamente um massacre semelhante ou pior ao ocorrido na Casa de Detenção em 02 de outubro de 1992, onde 111 presos foram covardemente assassinados, massacre este que jamais será esquecido na consciência da sociedade brasileira. Porque nós do Comando vamos mudar a prática carcerária, desumana, cheia de injustiças, opressão, torturas, massacres nas prisões.”.

Em entrevista ao Portal Terra, em 2012, Camila Dias, professora da Universidade Federal do ABC e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP), declarou que “O PCC é, sem dúvida, o principal efeito do massacre. Não apenas deste evento isolado, mas da política de segurança daquela época, marcada pela violência institucional, pelo desrespeito aos direitos e pela arbitrariedade do Estado“.

No entanto o ex-governador de São Paulo, Fleury, disse também em entrevista ao Terra que o massacre ter motivado a criação da facção “é lenda”. “Sabe o que era o PCC em 1993? Era o time de futebol para disputar o torneio interno das cadeias de São Paulo. Em 1993 e 1994, ele só era isso. Ele se organizou a partir de 1995 com essas 63 rebeliões que aconteceram. E não foi uma reação. Aí é uma glamourização do PCC. Eles se aproveitaram da fraqueza do governo de Mário Covas [Governador de São Paulo de 1995 a 2001]”, declarou na época.

Segundo Investigações do Ministério Público, membros do PCC teriam assassinado em 2005, a tiros Joel Ismael Pedrosa, que dirigia o presídio na época do massacre, e também administrou a Casa de Custódia de Taubaté.

SÃO PAULO, O MASSACRE DIÁRIO
Em 1993, o presídio que tinha capacidade para 3.300 detentos, abrigava somente no Pavilhão Nove mais de 2.000 homens, eram no total mais de 7.000 presidiários. O presídio que foi o maior da América Latina por 46 anos, chegou a alojar mais de 8.000 presos.

Na época o massacre foi visto como um reflexo da política de repressão do Estado, como estratégia para combater o crime, em que muitas vezes a morte era considerada como melhor maneira de repressão. Após a tragédia, com a revolta da população, houve a tentativa da humanização da polícia, mas não durou muito.

Para a pesquisadora Alessandra Teixeira, do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) a Segurança Pública em São Paulo, é marcada por uma história de “avanços e retrocessos”, declarou ao R7, em entrevista, em 2012.


Segundo ela, em 1987 Orestes Quércia [governador de São Paulo de 1987 à 1991], foi eleito
PM em frente à casa de detenção dois dias após o massacre
(Foto: Itamar Miranda 4/10/92)

com a bandeira da repressão, e com o seu “Pacote de Segurança”, ele retoma truculência da polícia, o que foi intensificado, no governo de Fleury, culminando no massacre. Já no primeiro mandato de Mario Covas [1995-1998], ela identifica a tentativa de se tentar um plano mais baseado na racionalidade, e menos na pura truculência. Porém com a chegada de Geraldo Alckmin [atual governador de São Paulo] ao governo em 2001, já no segundo mandato de Covas, quando ele fica doente, ela declara que “pós Covas, o que se viu foi um retrocesso total. Os dados dizem isso. No segundo mandato, ele fica doente e quem assume é o Alckmin. A partir daí, as estatísticas de letalidade policial começam a subir”.

Em 2002, após 20 anos do massacre, o presídio foi implodido, e hoje a área abriga o tranquilo Parque da Juventude, ao lado do metrô Carandiru, que transformou em escolas técnicas os pavilhões quatro e sete do presídio, além de transformar em ginásio a oficina de trabalhos manuais, e contar com ampla área verde, e áreas de esporte e lazer.

Mas infelizmente, da mesma tranquilidade não gozam os presídios e as periferias paulistanas, que continuam a sofrer com o genocídio diário, comandado pelo Governo do Estado de São Paulo e operado pelo seu braço armado. A política de repressão e extermínio nunca acabou.

O Estado de São Paulo, em 2014, possuía a maior população carcerária do País, com mais de 200 mil presos. E o Brasil foi apontado como quarto colocado no ranking mundial, com mais de 600 mil presos. Um terço dos presos do país está em São Paulo, segundo dados divulgados pelo Ministério da Justiça.

Em 2011, o tenente coronel Salvador Modesto Madia, que ainda era réu no processo do Carandiru, assumiu o comando da Rota, indicado pelo então secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Antônio Ferreira Pinto. 23 anos após o massacre, a tropa de elite da PMSP segue se envolvendo em flagrantes forjados, violações de direitos, violência, e execuções mascaradas de “autos de resistência”. Em setembro deste ano o comandante da Rota, o tenente coronel Alexander Gaspar Gasparian foi substituído, após menos de sete meses de assumir o cargo, na sua gestão a tropa teve pelo menos três fortes desvios de condutas comprovados, entre eles, a prisão de um pelotão inteiro, formado por 14 homens, por forjar um tiroteio para justificar a morte de dois homens, além da prisão de um soldado do batalhão, em setembro, após ter sido identificado por um sobrevivente da maior chacina do ano ocorrida no Estado, nas cidades de Osasco e Barueri, em agosto que deixou 19 mortos, e ainda não foi solucionada.

Além da superlotação carcerária, São Paulo, tem uma política institucionalizada de repressão policial, após 21 anos de Governo do PSDB. Somente neste ano foram 76 mortos em chacinas nas cidades da Grande São Paulo, todas em bairros periféricos, todas as vítimas eram moradoras dos bairros ou arredores, na maioria delas, as suspeitas estão baseadas em ataques policiais. Segundo dados da ouvidoria da Polícia, a tropa de elite da PMSP foi o batalhão que mais matou suspeitos este ano no Estado. No total foram 118 mortes em ações das policias militar e civil em 27 cidades, sendo 13 mortes de responsabilidade da Rota.

Em setembro deste ano, a Secretaria de Segurança Pública (SSP), divulgou que houve aumento no número de homicídios dolosos no Estado. No mês de agosto em relação ao ano passado, foram 106 vítimas, para 88 no mesmo período em 2014, a alta aconteceu principalmente pela chacina de Osasco e Barueri. "A polícia está de parabéns porque está trabalhando, e todos os índices estão em queda. Nós éramos o 25º Estado brasileiro em criminalidade, com os piores índices. Hoje, somos o primeiro do Brasil. Temos o menor índice de homicídios do país", elogiou o governador Geraldo Alckmin, em uma visita a São José do Rio Preto (SP). Ele ainda declarou que os resultados são positivos porque mostram queda na criminalidade do estado.

MASSACRE SERÁ LEMBRADO
Nessas mais de duas décadas, várias obras literárias, cinematográficas, musicais e até mesmo uma entrevista com a dançarina e cantora Rita Cadillac, conhecida como “madrinha” dos detentos, e que fez shows periódicos no presídio, mantém viva a história de horror vivida no Pavilhão Nove. Entre as obras estão cerca de sete livros, cinco músicas, um filme e uma série. Entre as mais famosas estão as músicas “diário de um detento” do grupo de rap Racionais MC’s, e “roleta macabra” do também grupo de rap Facção Central, que em trechos fazem referência ao massacre: “Dois ladrões considerados passaram a discutir. Mas não imaginavam o que estaria por vir. Traficantes, homicidas, estelionatários. Uma maioria de moleque primário. Era a brecha que o sistema queria. Avise o IML, chegou o grande dia”, dos Racionais e “O covarde que fuzila 111 no Carandiru, à paisana anda com a funcional no cu”, do Facção Central. Outras obras famosas são o livro “Estação Carandiru”, escrito pelo médico Drauzzio Varella, e o filme “Carandiru” de Hector Babenco. A tragédia também ganhou uma plataforma online, com noticias, artigos, fotos, documentos, e todo tipo de arquivo relacionado ao massacre, chamada “Memória Massacre Carandiru”.

Capa do livro "Carandiru", de Drauzio Varella


ATO NO CENTRO
Manifestação em memória ao Massacre
(Foto: Facebook/página do evento)
Na última sexta-feira, dia em que se completou os 23 anos do massacre do Carandiru, uma manifestação auto intitulada “Ato em memória aos 23 anos do Massacre do Carandiru - nem redução, nem Fundação: por uma vida sem grades!”, aconteceu no centro da cidade de São Paulo, segundo o site EBC, o protesto reuniu parentes de vítimas da violência do Estado, movimentos sociais como o Movimento Passe Livre (MPL), e coletivos autônomos, para lembrar a barbárie ocorrida, no Complexo do Carandiru, mais de duas décadas atrás. O protesto foi da Faculdade de Direito da Universidade São Paulo (USP), passando pelo prédio da SSP e pela praça da Sé, parando no prédio do Tribunal de Justiça, onde os nomes dos 111 presos assassinados foram lidos. A caminhada foi encerrada em frente ao Quartel do Comando Geral da Polícia Militar com mais um ato, os manifestantes carregavam velas acesas.

Um comentário:

  1. Policial bom é policial morto.Sempre bom relembrar esse tipo de violência, esses lixos tem que ser cada vez mais reprimidos para uma sociedade justas sem bandidos fardados. Parabéns pela postagem, continue assim!!! Viva o PCC!!!

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